quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Guerra invisível

A igreja de Nossa Senhora da Penha de França, do alto de seus 382 degraus, parece chorar no morro da Penha. Lágrimas invisíveis por um povo que sofre sem fim. Hoje o complexo do Alemão virou notícia mundial em razão da espetaculosa ocupação do Morro do Alemão. Na verdade o morro é um conjunto de 13 favelas, assim denominado em razão da aquisição de terras, ainda na década de 1920, pelo polonês Leonard Kaczmarkiewicz, exilado da I Guerra Mundial. Popularmente apelidado de “alemão”, daí o nome de “complexo do Alemão”.
O mote da ocupação foi uma resposta à desastrosa tática dos traficantes de, aleatoriamente, incendiar veículos pelas ruas do Rio de Janeiro. O tráfico cometeu um erro estratégico ao tentar criar um clima de terror na cidade. A resposta veio na forma de uma verdadeira operação de guerra. Expressões típicas da linguagem militar como “conquista de território” e “dia ‘D’”, foram veiculadas à exaustão pela mídia, excitada ao extremo pela cobertura de nossa “guerra do Iraque”. Afinal os tanques estavam nas ruas para comprovar a tese da guerra. Mas estamos mesmo em guerra? De que guerra estamos falando?
Não podemos nos esquecer que o tráfico é uma rentável indústria capitalista. Os “traficantes” do “alemão” na verdade são, segundo a socióloga Vera Malaguti, estudiosa do assunto, “comerciantes varejistas”. A terminologia traficante serve muitíssimo bem para reforçar a estética da guerra. Quando um jovem negro é morto pela polícia, basta rotulá-lo de “traficante” para que todos nos tranqüilizemos e nos regozijemos, afinal a polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata no mundo, mas se estiver matando “traficantes” está tudo bem.
Traficantes são os barões da droga, que se beneficiam da ilegalidade de algumas drogas (enquanto outras –tão ou mais lesivas- são aceitas socialmente) e faturam bilhões de dólares a cada ano. Estes moram em exuberantes coberturas, andam de iate e avião, não de moto-taxi e vans.
A imagem da polícia do BOPE e do exército subindo o morro e afugentando um bando de jovens de armas na mão e cabeças vazias, nos conforta. Isso é a Segurança Pública.
Acredito que segurança é um conceito mais amplo, que envolve saúde, educação, infra-estrutura urbana, lazer, coleta de lixo, saneamento, esporte, emprego, transporte e etc. Segurança Pública é ter uma polícia que não seja parceira do crime, que não alimente o crime. Que não faça parte das milícias que aterrorizam e controlam enormes áreas nos morros cariocas. Segundo a rádio CBN, que cobria o evento, foi encontrado na porta de uma casa no “morro do Alemão” o seguinte recado: “Sr. Policial: saímos cedo pra trabalhar, as crianças ficaram dormindo, é só chamá-las. Por favor, não arrombem a casa! Ass.: os pais”. Um retrato de como a população vê a polícia. O recado na verdade queria dizer: “não arrombem nossa casa, não nos roubem, não matem nossos filhos. Eles não são bandidos!”. Parece que não adiantou muito, pois os relatos de abuso policial, de roubo e de violência se multiplicam. Segurança Pública é, com certeza, tudo menos isso.
Alguns estudiosos vêem a ocupação como a superação de uma fase ultrapassada do modelo de tráfico. O novo modelo é mais politizado, pressupõe a existência de milícias, a representação parlamentar dos verdadeiros traficantes, a internacionalização dos negócios. Numa palavra: a transformação do tráfico em uma verdadeira empresa, a sua profissionalização.
Mas há uma pergunta não respondida: estamos em guerra? Sim e não. A guerra não é contra o tráfico (que aumenta a cada dia). Na Espanha ou em Portugal, que descriminalizaram as droga, o consumo caiu. A guerra no Morro do Alemão é contra a pobreza, é contra aqueles que foram e são marginalizados pelo poder. A guerra é a luta de classes, devidamente travestida de guerra contra o crime. Se não enxergarmos para além do teatro midiático, se não estabelecermos o crivo sociológico dessa disputa não saberemos quem é o inimigo e aí, como diz o indispensável Marcelo Freixo (deputado estadual do PSOL-RJ) essa é uma guerra onde “Não haverá vencedores”.

Fernando Carneiro