sábado, 15 de maio de 2010

LEGALIZAÇÃO DA GRILAGEM E PRIVATIZAÇÃO DE TERRAS PÚBLICAS NA AMAZÔNIA. (*)

Por José Nery (**)
Os latifundiários que se apropriaram ilicitamente de terras públicas na Amazônia, e as exploram de forma predatória, não raras vezes empregando a violência extrema e o trabalho escravo, estão habilitados a comprá-las a “valores de mercado”, sem licitação pública e exigência prévia de emprego de alguma outra forma de produção econômica. É o que prevê a Lei Nº 11.952/2009, resultante da conversão da Medida Provisória nº 458/2009, sancionada por Lula em 25 de julho passado, em flagrante indiferença aos protestos de inúmeros movimentos sociais e aos alertas dos mais sérios estudiosos das questões ambiental e fundiária na Amazônia, incluindo os contidos em carta de 37 membros do Ministério Público Federal, publicada logo após sua aprovação pelo Congresso Nacional. Além da anistia, uma premiação aos grileiros, devastadores da floresta e violadores contumazes dos direitos humanos; a legitimação de ilicitudes e práticas criminosas usadas para garantir o domínio real de terras públicas; a legalização do ato de usurpar terras constitucionalmente reservadas à reforma agrária ou à titulação em favor das comunidades tradicionais. Essa inversão fica evidente quando se considera que as posses de até 100 hectares, que justificariam projeto de regularização de real interesse público, ocupam parcela bastante minoritária de toda a extensão a ser privatizada.
As terras passíveis de regularização, distribuídas em nove estados da Amazônia Legal, somam aproximadamente 67,4 milhões de hectares marcados pelo desflorestamento escandaloso, destruição incessante dos recursos naturais não renováveis e múltiplas formas de violência que caracterizam o padrão de desenvolvimento imposto à região há mais de quarenta anos. A elevação vertiginosa das taxas de desflorestamento na região está intimamente associada à expansão das atividades econômicas extensivas. As taxas acumuladas de desmatamento em estados da Amazônia Legal são maiores naqueles onde ocorreram maiores investimentos em mineração, exploração madeireira e na pecuária, a partir dos anos de 1970. Ao mesmo tempo, esse processo de concentração fundiária agride diretamente a própria condição humana, sendo largamente conhecida a violência praticada pelos seus mais poderosos protagonistas contra os todos os que se opõem à voracidade com que avançam sobre a floresta e as terras devolutas. Cada nova fronteira confirma a deliberada indefinição do Estado sobre o direito de propriedade das terras indevidamente ocupadas, que prefere deixar a critério de grileiros e investidores a escolha dos meios eficazes para impor seu domínio sobre as mesmas, ensejando o uso do poder econômico e da beligerância armada contra pequenos posseiros, comunidades tradicionais e trabalhadores sem - terra como método de apropriação privada de terras públicas.
Por força da nova lei, criam-se condições tão mais propícias à regularização de terras griladas quanto mais adversas à reforma agrária, às milhares de famílias que aguardam por um assentamento, acampadas às margens das estradas, como também, ao direito coletivo das populações indígenas, quilombolas e tradicionais de permaneceram nas terras que ocupam secularmente. E sequer é capaz de conter a concentração de terras e a devastação florestal nos limites em que se encontram atualmente, porque preserva a lógica que as alimenta historicamente. Trata-se de uma lei permissiva ao avanço do latifúndio sobre a floresta amazônica e contra os direitos dos povos que habitam esta região, além do que a ilegalidade e a violência não cessarão com a apropriação privada dessas terras públicas; seguirão existindo como elementos de sustentação das formas produtivas e do mercado levados à fronteira econômica; serão usados para a apropriação de créditos públicos que financiem os setores produtivos hegemônicos e para o esmagamento de interesses colidentes; serão empregados pelos detentores do patrimônio fundiário concentrado na conquista do poder político e de um estagio superior de dominação territorial.

Era o passo reclamado pelo agronegócio desde a edição, no governo FHC, da Medida Provisória 1.710/ 98, no que possibilitou o perdão aos devastadores da floresta que por meio de "termos de compromisso" com os órgãos de gestão ambiental nas três esferas de governo comprometendo-se a recuperar as áreas degradadas em até 10 anos; iniciativa que estimulou grandes grupos empresariais a investirem na grilagem de terras devolutas da União, conformando novos latifúndios a partir da aquisição de várias propriedades circunvizinhas, regularizadas por “laranjas”. Com a edição deste marco legal, o governo Lula deixou mais explícita sua conversão ao ideário modernizante - conservador que atribui ao mercado a capacidade de produzir soluções viáveis aos impasses históricos que atravessam o desenvolvimento da economia no Brasil, rendendo-se a suposta inviabilidade de qualquer projeto verdadeiramente comprometido com a superação das desigualdades sociais de acesso à terra e à riqueza e com a preservação dos recursos naturais e culturais da Amazônia. Dá um passo adiante em sua opção por um modelo de desenvolvimento nacional baseado na pauta de exportações de commodities, que requer a reprimarização da economia e a preservação dos mesmos elementos que marcaram a colonização do país e, por conseguinte, só pode ser viabilizado com a apropriação de vastos territórios e a concentração da terra.
Denunciar o conteúdo, finalidades e efeitos previsíveis da Lei Nº 11.952/2009 é uma tarefa obrigatória e inadiável para o PSOL e toda a esquerda socialista, que pressupõe uma firme determinação para construir alternativa de desenvolvimento fundada nos reais interesses da grande maioria do povo brasileiro, necessariamente comprometida com preservação do bioma e diversidade territorial e cultural do país; uma alternativa ecologicamente sustentável e atenta às reais necessidades e vocações das populações que habitam a Amazônia. Não se trata de fazer nenhuma concessão à ecologia de mercado, ao eco-capitalismo, ao interesse do capital de incorporar à sua estratégia de dominação as bandeiras preservacionistas que sensibilizam a humanidade, pois sem a destruição do mercado e da acumulação capitalista não será possível inverter o processo de deterioração dos recursos naturais. Trata-se de assumir como elemento essencial do projeto socialista a defesa de formas de produção que respeitem os limites da biosfera e reconheçam a importância especial da Amazônia brasileira para a legitimação de um projeto nacional uno, mas regionalmente diferenciado também para preservar o maior patrimônio natural do Brasil. Nessa perspectiva, são imperiosas medidas de incentivo a agricultura familiar e ao desenvolvimento de muitas outras formas de produção ecologicamente adequadas, em substituição ao agronegócio e à toda forma de produção que agrida a floresta e os recursos naturais e culturais que a mesma protege; nessa perspectiva, contraposta às leis que regulam a acumulação capitalista, a grilagem, apropriação de terras públicas e o latifúndio serão duramente combatidas em nome do interesse nacional.

(*) Condensação do texto original, publicado da Revista Socialismo e Liberdade, do PSOL.

(**) José Nery é Licenciado em Geografia pela UFPA e Senador do Partido Socialismo e Liberdade ( PSOL).

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